MÃE OU MALÉVOLA?
Minha mãe não permitiu aos filhos conhecer o que era privacidade. Na teoria sim, exemplarmente. Mas no dia-a-dia, ela desrespeitava todos os limites. No afã de cuidar e proteger, perdia a mão. Ora sufocava de cuidados, ora explodia em gritos de repreensão. Usurpava nossa voz e várias vezes me vi dublando respostas que eram dela e não minhas. Tirava nosso poder de ação sobre os fatos, incutindo em nosso espírito uma sensação de dependência e impotência. Autoritária e intimidadora, anulou diversas vezes a possibilidade de termos nossas próprias impressões sobre assuntos e pessoas. Vetava nosso direito de ir e vir à rua na maior parte das vezes e quando saíamos, fuçava nossos armários como se fossemos suspeitos de algum crime. Diálogo também nunca foi seu forte e não possuía a menor didática para lidar com crianças ou adolescentes. Suas conversas eram sempre os mesmos assuntos políticos-antropológicos-
Elucidando-a, mi madre Dona Marcia é um personagem de temperamento genioso, forte, cheio de opinião e disposição para palestrar. Viveu a maternidade prematuramente e teve de fazer escolhas que boicotaram seus sonhos individuais (será que isso explica tanta raiva no coração?). Desde a minha adolescência, sua expressão sisuda e pouco convidativa, igual a do meu avô, desencorajava qualquer contato de conhecidos na rua. As pessoas me diziam: “vi sua mãe andando esses dias por aqui, não a chamei porque ela parecia estar brava”. E nem estava! É que mamãe é dessas, espanta até gripe com a cara de má que Deus lhe deu.
Ela vivia todas as suas emoções através de nós. No entanto, tais atitudes ao longo da juventude só nos ensinou a ser adultos emocionalmente frágeis e bastante inseguros. Ensinou que só a palavra não basta e que devemos desconfiar de tudo, por premissa. E apesar do discurso politizado, no final das contas, seu exemplo não tinha nada de genial e tampouco politizado. Pelo contrário, foi uma ditadora com sua família.
Se há um lado bom nisso tudo é que me inspirou a libertação. Quando assumi que era gay, a convivência entre quatro paredes se tornou insuportável e me forçou a buscar novos lares. Fui acolhida pela minha avó e pude desenvolver a doçura. Passei a perseguir minha independência com tenacidade. Tornei-me mais leve, feliz, sem claustrofobia. E até hoje luto contra os reflexos dessa criação conturbada e contraditória. Adquiro consciência em meu modo de lidar com o mundo, num lento e profundo processo de autoconhecimento. E reconhecer essas lacunas é o primeiro passo para a mudança. Como dizia Sartre, não importa o que a vida fez de você. Importa o que você fez do que a vida fez de você.
Mesmo com tantos deslizes, sem você eu não existiria. Então, obrigada mãe.
Por Tacy de Campos cantora, compositora, poeta. Seu primeiro disco autoral é “O Manifesto da Canção” e integra os projetos “DuoPlex“, “DuoÀs” e Banda Os Marginais. Tacy ainda atua como atriz e cantora em Cassia Eller, O Musical desde 2014 e apresenta o show “Relicário Cássia Eller”. É voluntária dos projetos “Os Pitais” e “Solyra”. É Colunista do Portal VRNews e apresentadora do Programa Sala dos Fundos no YouTube.